Flood in Paris by Albert Marquet (1910)

Doze horas de chuva pesada ininterruptas e as pessoas agora só conseguiam se locomover pela cidade em botes, porém, não era recomendável. A televisão noticiava os principais pontos de alagamento. Não havia lugar seco no momento. A água escorria pelas ladeiras de Montmartre. A torre Eiffel só era vista de hora em hora quando estava piscando as luzes. O metrô estava fechado. Os sinais de internet e telefone não estavam funcionando muito bem.

Betty estava em casa com boa parte da sua família. Muitos não pareciam ligar para o que estava acontecendo lá fora, continuavam comendo, dormindo, fazendo suas atividades como se fosse um sábado qualquer. Outros, grudados à frente da televisão, faziam apostas para ver quando a chuva iria parar. "Acho que em poucas horas o céu estará azul novamente", dizia uma tia mais otimista. "Estamos em Paris, querida, aqui chove mais do que em Londres, acho que vai chover até segunda-feira", dizia um tio. "Espero que chova uma semana! Assim não preciso ir para a escola!", comentava o priminho, sem ter a real dimensão do que estava dizendo.

Assim, as horas e os dias foram passando, mas a chuva não parava. O Le Zouave já estava só com a ponta da cabeça ainda descoberta pela água. Era o recorde que o nível do rio Sena jamais tinha atingido: quase dez metros de altura. O recorde anterior tinha sido na enchente de 1658, quando marcou 8,96 metros. Paris estava desaparecendo debaixo d'água e ainda havia alguns cidadãos mais velhos que não acreditavam no aquecimento global.

A comida da casa de Betty estava acabando. Tiveram sorte, pois havia sobrado bastante coisa do serviço do enterro da tia Neva. Entretanto, era preciso agir. Alguém precisava sair para buscar comida. Na televisão, as emissoras já utilizavam apenas câmeras da cidade para mostrar imagens enquanto os repórteres falavam do estúdio. Diziam para ninguém sair de casa. Porém, já se via pessoas desesperadas na rua de bote procurando algum lugar com comida.

Enérgica que era, Betty resolveu agir. Se não saísse agora, com certeza a fome iria aumentar e ficaria pior para enfrentar a enchente com o corpo fraco. Como ninguém se ofereceu para ir com ela, vestiu suas roupas impermeáveis - capa, galochas, luvas e uma sacola - e saiu pelo andar de cima da casa, pois o térreo estava completamente submerso. Nadou até onde sabia que estava mais raso e saiu andando com dificuldade, tentando não ser levada pela correnteza. Foi seguindo sua intuição e encontrou pessoas no caminho, mas elas não estavam muito prestativas. Continuou mesmo assim, procurando sempre as partes mais altas das ruas, pois lá não precisaria nadar.

Resolveu subir uma rua em direção a Montmartre, pois achou que lá pelo menos conseguiria ver as calçadas. Pensou errado. As calçadas pareciam cachoeiras e as pessoas se seguravam pelas portas e janelas das casas para poder se mover. Quando estava já no topo de uma das ruas, onde havia uma aglomeração de dez a quinze pessoas, Betty imaginou que ali houvesse comida e caminhou mais rápido. Sua fome movia seus pés, só pensava em conseguir algo para levar de volta para casa.

Fraca e ensopada, Betty não conseguiu segurar numa grade e escorregou na água. Foi arrastada pela correnteza. Enquanto rolava ladeira abaixo, Betty só pensava "estava tão perto da comida". Sem conseguir parar, ela sentia bater em coisas pelo caminho, talvez bicicletas ou motos deixadas na rua. A água a levou até a parte mais baixa, onde o alagamento marcava quase um metro, e ela conseguiu apenas manter a cabeça fora d'água.

Tonta, fraca e ferida, Betty adormeceu.

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